domingo, 25 de março de 2012

VIGILÂNCIA INTERIOR


Todos os homens e mulheres têm, sem saberem, uma enorme reserva de força e energia, muita da qual fica sem uso. Se estas forças não forem dirigidas conscientemente, nem utilizadas construtivamente em qualquer tipo de trabalho físico, intelectual ou artístico, então tal como o leite azeda quando não é consumido, estas forças tornam-se negativas, ou mesmo, destrutivas – como pode ser visto em muitos adultos e crianças.

A prática da concentração caminhando no exterior

Por razões especiais, incompreensíveis ao homem vulgar, a vida procria em excesso de abundância – mas as leis cósmicas obrigam a que, nada no universo fique estático, sem uso ou seja desperdiçado. Quando estas forças não produzem – dependendo do tipo de pessoa e do temperamento – ora se viram para dentro, atuando contra a própria pessoa e eventualmente destruindo-a sem que o saiba, sob a forma de preocupações, e ansiedades, depressões, ora se viram para fora, ora se transformam em sensualidade, propagando tensões, e brigas à sua volta – e até, em escala maior, engendrando guerras! Estas energias extras no ser humano destinam-se à demanda espiritual e aos seus esforços, bem como adornar o mundo com a Beleza de grandes criações artísticas. Quando estes fins não são cumpridos, então, como sempre acontece, a gravidade puxa estas forças na única direção para que podem ir – para o fundo.

Muitos estados de depressão, emoções negativas e desejos sensuais são, em geral, sinais de energias não usadas. Sempre que surgem, um aspirante vigilante deveria reconhecer imediatamente estes sintomas, tentando converter estas forças numa solução positiva e criativa, antes de poderem estagnar e o minar, inundando-o ocultamente com pensamentos e sentimentos destrutivos.

Quanto mais alto subimos numa montanha, mais rarefeita e pura é a atmosfera; e quanto mais perto do cume estivermos, mais vasta e imponente é a perspectiva. De forma semelhante, existem diversos níveis de consciência no Universo, desde os mais elevados aos mais baixos. Nas misteriosas esferas superiores, reinam os Devas (deuses sublimes) refletindo em redor seu divino resplendor sob a forma de luz espiritual, sentimentos gloriosos e dons de inspiração artística; ao passo que as regiões inferiores são habitadas por Asūras (deuses demoníacos), que espalham negras influências por todo o lado. E o ser humano carrega bem dentro de si estes dois extremos. Se não lutar conscientemente para se elevar aos níveis superiores, inevitavelmente, os aspectos inferiores da sua natureza, o dominarão, usando-o sem que se aperceba, acabando por consumir a sua vitalidade.

Um aspirante sábio e atento fica de guarda e protege cuidadosamente as suas forças de poderem ser furtivamente desviadas, e desbaratadas em emoções negativas, imaginações fúteis e atividades desnecessárias. Ele sabe que necessita de cada gota da sua energia para práticas espirituais, e que é essencial economizá-las. Contudo, se, em determinadas ocasiões, se encontrar perturbado, agitado ou deprimido, e, por qualquer razão, não for capaz de readquirir a força que o pode libertar desse estado, então, antes que este reúna demasiado momentum descendente ampliando o seu domínio, é preferível deixar esta prática espiritual e decidir-se por uma outra, como por exemplo, caminhar; uma forma de exercício espiritual que, de qualquer maneira, deverá utilizar sempre, principalmente, se estiver no exterior.

Esta técnica de andar, não só utiliza a sua energia de forma produtiva em dias em que não consiga dominar o seu estado interior, como também lhe abre novas vias para realizações espirituais mais profundas de auto-conhecimento. As dificuldades que tiver com este exercício ajudá-lo-ão a compreender melhor, não só a necessidade imperiosa de se manter num estado de recolhimento interior intenso e ativo, como também de meditar serenamente dentro das paredes de um mosteiro ou do seu quarto. Se isto falhar, todas as realizações espirituais, por muito elevadas que sejam, não poderão ser implementadas na vida ativa, e não conseguirá prever como enfrentará ou reagirá aos ventos imprevisíveis e impiedosos do mundo exterior, sempre que o destino, inexplicavelmente, o lançar no meio deles.

Porque, mesmo que consiga retirar-se da vida exterior por algum tempo, mais tarde ou mais cedo, terá de deixar a proteção da sua reclusão e partilhar com a humanidade agonizante os frutos da sua colheita espiritual – os quais, por lei divina, não poderá guardar só para si.

Esta nova prática tão importante acima mencionada consiste em concentrar toda a sua atenção nas solas dos pés enquanto anda na rua. Geralmente, quando se caminha, nunca se está corretamente presente nem consciente. Movimenta-se num estado de distração mental, perdido num labirinto de imaginações fúteis. Para começar a compreender o sentido da sua existência, e o que lhe é exigido pela Mente Suprema Universal, que lhe deu o sopro da vida e a inteligência, é preciso entender primeiro este dramático problema, que é o estranho estado de esquecimento, no qual passa a sua vida. E bem precisa de toda a ajuda possível.

Os seus esforços serão largamente facilitados se souber manter-se presente nesta prática, sentindo as solas dos pés, de cada vez que tocam o chão. Neste trabalho específico, a concentração nas extremidades das pernas vão mostrar quão importante é largar os pensamentos usuais, permitindo que surja uma nova forma de consciência para substituir a mente inferior. Se o seu eu inferior não mudar consideravelmente, pelo menos dando espaço a algo mais valioso, esta consciência luminosa, que embora ignorando, transporta no seu íntimo, não conseguirá emergir e destacar-se suficientemente de forma a que a sua presença seja sentida.

Será conveniente que não se aventure em tarefa tão difícil e invulgar, sem alguma preparação primeiro - caso contrário vai esquecer-se de a praticar a maior parte das vezes, ou então nem terá a força necessária nem a determinação, para manter tão extenuante luta. Os seus esforços, cada vez mais débeis, não trarão resultados positivos.

De cada vez que pensar sair, deverá preparar-se interiormente, nem que seja só por trinta segundos. E, antes de começar este exercício, ou qualquer outro, deve sentir, primeiro, o que está em jogo em tais momentos.

Em vez de consentir que a mente divague desordenada em dispersões vãs, deve habituar-se sempre a permanecer atento neste importante trabalho, usando da máxima sinceridade. Deverá praticar com tenacidade e de forma continuada este especial exercício, até ser capaz de se manter ligado interiormente, sem esforço, com a Origem Superior, ao longo de todas as atividades externas, podendo um dia não precisar mais deste suporte temporário, ou só precisar dele de tempos a tempos, em alturas de maior dificuldade interior.

O aspirante não deverá desistir deste trabalho especial pelo fato de poder encontrar, ao princípio, grande resistência no seu interior. Como verificará, o mais leve e inesperado movimento ou som pode, subitamente, distraí-lo do seu objetivo: pode ser um peão que acidentalmente colida com ele, uma mosca que insiste em posar na sua cara, ou o ladrar sonoro de um cão – seja o que for, antes de se aperceber do que aconteceu, já se ausentou!

No começo dos seus esforços para ficar “presente”, descobrirá que, mal deu os primeiros passos, e de uma maneira inexplicável e abrupta, ausenta-se e dispersa-se de novo, completamente esquecido do seu importante trabalho espiritual e da intenção de permanecer concentrado. Dois, ou mesmo cinco minutos mais tarde, também se surpreenderá quando, inesperadamente, como um raio, se der um estranho, inexplicável e muito rápido movimento para dentro - cujo significado não consegue apreciar nem entender, ao princípio – voltando a recuperar consciência de Si! Nesse preciso momento, percebe, que, nem só já se tinha esquecido deste exercício, como – o que é mais curioso ainda – de uma forma incompreensível o conhecimento e a percepção da sua existência foram estranhamente apagados ao mesmo tempo. Foi engolido misteriosamente e – por assim dizer - “morreu” neste estado de esquecimento de si!

O aspirante deve ter um cuidado especial para não se irritar nem ser intolerante para consigo, de cada vez que, assim, perde, o fio condutor da sua atenção.
Deve recomeçar de forma paciente e persistente, com maior determinação ainda, fixando a atenção, e sentindo, as solas dos pés a descer e a tocar o solo. Com este processo, vai, entre outras coisas, começar a conhecer-se como é de verdade. Começa a reparar em todos os sentimentos ocultos, cambiantes e contraditórios, as suas inconscientes inclinações para criticar, desejos, tensões, inquietações e muitas outras coisas que, de outra forma não conheceria.

Se, ao longo desta prática encontrar muita dificuldade em manter-se recolhido no seu interior, deverá tentar ir de uma árvore à outra (sem ter de olhar para elas obrigatoriamente), usando a distância que as separa como suporte adicional, enquanto mantém a atenção fixada na sola dos pés. Se não houver árvores por perto, qualquer outro objeto serve para o fim. Quando chegar a esse marco, deve almejar imediatamente outro. Deverá, porém, aumentar gradualmente a distância entre eles, a cada dia que passa, até poder largar totalmente esta referência de apoio.

É este movimento misterioso para o seu interior que terá de captar e perceber com clareza. Contudo, esta compreensão não deverá ser mental, mas intuitiva. Posteriormente não conseguirá deixar de notar como, – i.e., quando recuperar a consciência de si – de cada vez que o esquecimento de Si desce e o subjuga, este estado caracterizado pela desorientação do seu ser, identificado com o aspecto inferior da sua natureza, fantasias intermináveis, ambições, frustrações, preocupações e esperanças impraticáveis, todas, tal qual um caleidoscópio, constantemente a mudarem e, substituindo-se umas às outras a cada momento.

Em contraste, de cada vez que este súbito desaparecimento interno se dá, o praticante experimenta, por um breve instante, outro estado de consciência que não dura muito – um invulgar, estado de consciência distante que pode perder, ou não perceber com clareza ao princípio. Este movimento para dentro é tão reduzido inicialmente, e dá-se tão depressa, que lhe pode escapar o profundo significado e importância, se não tiver um professor iluminado que lho assinale e transmita.

Consoante o aspirante vai perdendo e ganhando esta consciência especial de Si, progressivamente vai compreendendo mais e melhor este estranho fenômeno do seu “desaparecer e reaparecer”. Intuitivamente começa a perceber o que acontecia, quando se perdia antes, e era chamado para outro estado de existência. Eventualmente chegará a compreender que, de cada vez que se dá este movimento estranho e inexplicável para o seu interior, é como um re-nascer, e sempre que o movimento contrário acontece, para fora e “para longe” dele, é como uma morte.
Descobre que “morre” no seu estado habitual de esquecimento, a cada instante da sua vida e sem que se aperceba.

Quando mais tarde, após longa prática, for capaz de permanecer consciente por períodos mais longos, começa então a viver, ver, e ouvir de maneira diferente. Imbuído deste aspecto impessoal superior, começará – com pequenos lampejos ao princípio – a ver as coisas como são. Compreenderá os sentimentos dos outros e lerá mensagens misteriosas nas árvores, nas montanhas e em todas as coisas em que os seus olhos vejam.

Um ser humano só pode viver mais plenamente se for capaz de estar presente e ligado à sua Origem Suprema - este Espectador misterioso, silencioso e distante.

A força aumenta quando usada sábia e construtivamente. Se for bem usada, cresce e recompensa o utilizador tornando-o ainda mais forte – tal como um agricultor quando faz um esforço inicial para lavrar o campo e semear alguns grãos de trigo e, de forma enigmática, o solo acaba por produzir uma colheita maior do que previa. Se o aspirante conseguir a força interior necessária para começar os esforços preliminares que o concentrem em si, passa a viver em níveis superiores de consciência, reunindo cada vez mais energia, que o levará a esforços ainda maiores, alcançando planos de existência mais elevados.

Dessa forma, através dos seus esforços, obterá maior crescimento espiritual e transformação – já que ninguém o pode fazer por ele e trabalhar para a sua redenção, tal como ninguém consegue colher vitalidade e proveito da refeição comida e digerida por outrem.

Quando usada, a força cria mais força. Ao trabalhar com tenacidade para a sua iluminação e salvação, o aspirante descobre que desenvolve o poder interior de concentração e a capacidade de atenção. E isto aumenta a intuição, insight e inteligência a um tal nível superior que, de cada vez que entram em ação, expandem miraculosamente e germinam, dando lugar a uma maior sabedoria num plano ainda mais elevado.

Quanto mais se faz, mais será possível fazer, e quanto menos se faz, menos se fará.

Se, o praticante usando de perseverança e esforços fervorosos, atingir algum nível de iluminação e realizar a natureza deste Ser Verdadeiro, sempre que ocorrerem momentos de esquecimento e repentinamente “voltar a Si” (relembrando, i.e., olhando para dentro para a presença deste “Espectador” imparcial e silencioso), invariavelmente saberá que este aspecto misterioso e luminoso da sua consciência esteve sempre lá, nunca deixando de brilhar, iluminando o seu ser com todo o seu esplendor. De fato, esteve lá sem cessar, sem nunca o abandonar. Se, ocasionalmente, puder pensar que “Ele” se ausentou, na verdade, quem desviou o olhar e “O” esqueceu, foi ele.

Após algum tempo, ao olhar para trás, o praticante ficará surpreendido ao notar, que, paradoxalmente, até esses períodos de “esquecimento” têm o seu lugar e significado próprios no esquema das coisas, por forma a auxiliá-lo na elevação a planos superiores do seu ser. Naturalmente que não terá passado despercebido, (à parte de outros problemas exteriores e sofrimentos que este esquecimento lhe trazem), que, de cada vez que perde a consciência de Si, e que a atenção e os interesses são novamente arrastados para devaneios e atividades inúteis, acaba por cair num vazio e numa solidão terrível nas profundezas da sua alma. Verá, então, com clareza, que os únicos momentos em que se encontra plenamente consciente da sua existência, e possui um sentimento de totalidade, são os momentos em que o seu olhar se vira para dentro, para a luz da sua natureza superior.

Mais adiante, compreende ainda que, sempre que se afunda de novo no seu estado de oblívio, já não é o mesmo estado de esquecimento de antes – porque, nesses momentos, vive uma sensação estranha e intransmissível de se sentir desconfortavelmente à vontade. Se for bastante sensível para reconhecer imediatamente esta condição, poderá transformar esta estranha e desconfortável sensação num outro instrumento ou numa lembrança que sirvam para se libertar daquilo que o absorveu de forma tão inútil, podendo regressar à consciência do seu ser superior e verdadeira vida, habitando desperto na paz da sua morada interior.

15º Capítulo da obra de Salim Michael "A Via da Vigilância Interior" editado por Publicações Maitreya. 
http://espiritualizandocomaumbanda.blogspot.pt/search/label/Ajuda%20Espiritual

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