terça-feira, 12 de março de 2013

OS DEFEITOS DOS OUTROS...

O que percebemos como defeito nos outros é simplesmente uma representação dos nossos próprios defeitos. Se observarmos o que se passa com a outra pessoa, poderemos usar aquilo que notamos como um espelho para conhecermos a nós mesmos. Um comentário sobre dois versos do Dhammapada, de autoria da falecida Ayya Khema.

Fáceis de serem vistos são os defeitos dos outros,
Difíceis mesmo de ver são os nossos;
Os defeitos dos outros você revela
Como no ato de separar a casca do grão,
Mas os seus próprios defeitos você esconde
Como o trapaceiro esconde a jogada perdida.
Aqueles que sempre se queixam dos defeitos dos outros,
Que criticam constantemente,
Os desejos deles crescerão
Distantes estão eles da cessação dos seus desejos.
Dhp 252-3

ESSAS DUAS ESTROFES do Dhammapada são de relevância universal e capazes de gerar insights significativos. Na primeira estrofe, nossa tendência para esconder nossos defeitos é como o subterfúgio de trapacear, porque essencialmente estamos sendo desonestos para com nós mesmos. Reconhecer como somos na realidade é extremamente difícil, especialmente em relação aos nossos defeitos, pois a nossa opinião sobre nós mesmos é sempre tão fora do ponto, ela é ou muito alta, ou muito baixa. A melhor maneira de obtermos um retrato claro e realista de nós mesmos é nos observarmos com atenção plena.

Não é difícil para nós notarmos os defeitos das outras pessoas, pois eles freqüentemente nos irritam e nesse estado negativo ficamos convencidos de que aquilo que pensamos é o certo e que por isso temos o direito de julgar. E nós ficamos prontos para criticar, e ao fazer isso esquecemos que o nosso pensamento está baseado nas nossas próprias opiniões, que não são completamente imparciais. Num certo sentido, todas as nossas opiniões estão erradas, pois elas estão enraizadas na ilusão do nosso ego: “eu tenho, eu quero, eu farei; eu acredito, eu sei, eu penso.” No nível relativo, essas nossas opiniões podem retratar a verdade, mas a verdade relativa não poderá nunca ser suficiente para nos satisfazer completamente, pois no fim, ela pode expressar apenas a verdade de um ego contra a de um outro ego. Uma pessoa acredita nisso, uma outra acredita naquilo; uma faz isso de um jeito, uma outra faz isso exatamente do jeito oposto. A verdade construída em torno da noção de um ego não pode ser absoluta e pura. Na melhor das hipóteses, ela reflete preferências pessoais. A verdade relativa não pode ir além disso.

Partindo do ponto de vista da verdade absoluta, temos um quadro muito diferente. A partir dessa perspectiva, nós começamos a entender que os defeitos que nos preocupam nos outros deveriam ser reconhecidos em nós mesmos com o mesmo interesse. Os defeitos dos outros são um reflexo dos nossos próprios, pois do contrário não seríamos capazes de reconhecê-los. Quando vemos alguém com raiva ou exibindo-se com ostentação, nós reconhecemos esses defeitos por já termos experienciado esses estados em nós mesmos. Nós sabemos como essas reações emocionais surgem e como as sentimos. Do mesmo modo, diz-se que só um Buda pode reconhecer um Buda, porque só um iluminado conhece a iluminação.

Quando nos damos conta de que estamos criticando outras pessoas, deveríamos entender que estamos no caminho errado. É improvável que a nossa crítica terá alguma utilidade; pensando bem, quando foi que alguém mudou depois de ser duramente criticado? Espalhar negativismo é sempre prejudicial, principalmente para nós mesmos. É provável que uma outra pessoa fique irritada conosco e se reagirmos com raiva e ressentimento, entraremos num círculo vicioso de mais negativismo ainda, e possivelmente perderemos um amigo.

Portanto, a crítica não ajuda – mas ficar ciente, sim. Se, por exemplo, notamos alguém agindo sem atenção plena, a reação correta seria, “Eu me pergunto quão atento estou neste momento?” E essa é a única resposta válida. Se observarmos algo inábil no comportamento de uma outra pessoa e quisermos criticá-la, deveríamos nos lembrar que a crítica é prejudicial para nós mesmos.

Quando a crítica repetida se tornar um hábito, nós teremos entalhado marcas de negativismo dentro de nós mesmos. Provavelmente todos nós conhecemos alguém que faz da crítica um hábito, e nós sabemos o quão desagradável é escutá-lo. Portanto, devemos estar alertas para com as nossas críticas, e evitar que as outras pessoas sofram com esse hábito desagradável. Deveríamos também estar conscientes de que cada vez que criticamos, estamos gradualmente formando um hábito.

E se, ao contrário, usarmos a oportunidade para observar o que está acontecendo com as outras pessoas, poderemos usar o que notamos no comportamento delas como um tipo de espelho de nós mesmos. E esse é um espelho precioso, porque embora ele não nos proporcione uma vista dos nossos traços físicos, ele nos permite começar realmente a difícil tarefa do auto-conhecimento. Essa tarefa é difícil porque nós não só somos desprovidos de atenção, como preferimos essa situação – nós preferimos não conhecer a verdade; estamos ansiosos por evitá-la por que tememos que ela seja desagradável.

Dois dos oito fenômenos mundanos estão envolvidos aqui: elogio e crítica. Preocuparmo-nos em ganhar elogio e evitar a crítica é obviamente um pouco absurdo, mas na verdade nós não questionamos isso. E além disso, essa preocupação é a responsável pela nossa relutância em entrar em qualquer tipo de auto-análise: temos medo de encontrar coisas que poderiam fazer com que tenhamos que aceitar a nossa culpa. Preferimos usar viseiras, evitando olhar para dentro de nós mesmos de maneira abrangente.

O medo da censura pode ser tratado usando a fórmula, “Reconheça, não critique, mude.” O primeiro passo é se tornar consciente desse medo de ser repreendido, do desacordo, da falta de apoio e apreciação.

A raiz de todo medo é o medo da não existência. De modo subliminar, ele está presente em todos nós e pode emergir repentinamente com o pânico, simplesmente por que nós não queremos incorrer em censura. Ao mesmo tempo, estamos sempre prontos para colocar a culpa nos outros, com a crença de que isso não irá nos prejudicar. Mas estamos enganados, pois ao dar lugar para a negatividade, somos nós que sofremos.

O medo da censura é o mesmo que o nosso medo da morte, ou o nosso medo como agente do nosso ego, da nossa auto-afirmação. No final, é o medo de não estar mais aqui. É claro que quando prevemos uma acusação, não tememos desaparecer naquele momento; tememos o desaparecimento da nossa auto-estima que depende da apreciação dos outros.

Obviamente, isso é loucura, mas mesmo assim a maioria das pessoas está totalmente convencida dessa idéia, algumas ao ponto da obsessão, de modo que elas ficam o tempo todo tentando agradar a todos. Mas como esperamos alcançar isso? Nós, em primeiro lugar, sequer sabemos quais são os sentimentos e desejos das outras pessoas.

Embora não possamos fazer tudo de acordo com o que os outros querem, podemos sempre tentar fazer o que é mais benéfico.

Que nós queremos aplauso e elogio, é um fato da vida. Nossas ações são geradas com esse fim e se o nosso desejo é frustrado, somos tomados pelo medo que impede a objetividade. Em outras palavras, nós tememos a crítica. Para nos livrarmos desse medo, deveríamos começar tentando não ser tão críticos nós mesmos, compreendendo que o que quer que façamos retornará como um bumerangue.

Esse primeiro passo em direção ao insight do princípio de causa e efeito – algo observável por toda parte no universo – é insuficiente para superar todo o medo. O segundo passo envolve a compreensão da natureza do medo. Na nossa busca por afirmação por parte dos outros, nos tornamos escravos do nosso ambiente. E enquanto esse ambiente deixar de corresponder às nossas expectativas ou de confirmar o quão maravilhosos, inteligentes e bonitos nós somos, continuaremos desconfortáveis. Tal atitude torna a vida imensamente difícil e obstrui nosso progresso em direção ao auto-conhecimento.

Por outro lado, o auto-conhecimento honesto é essencial para que sejamos capazes de abandonar as nossas obsessões, inclusive o nosso medo da censura. Pois só podemos abandonar aquilo que tivermos reconhecido completamente por nós mesmos, e é bem desnecessário transformar o nosso medo da censura em medo do auto-conhecimento. O fato de sermos capazes de abandonar o ego, depois de termos compreendido que isso não significa que iremos morrer, significa que o egocentrismo não é mais a força dominante na nossa vida. As coisas não precisam revolver em torno de como nós as vemos todo o tempo. Ao invés disso, abrimos um espaço dentro de nós para aquilo que é universalmente verdadeiro. Nós então compreendemos que, por que existem erros em cada aspecto da existência condicionada, a perfeição não será encontrada em lugar nenhum.

Considere o fato da impermanência: tudo que existe deve desaparecer, e nada permanece o mesmo. Se tentarmos nos agarrar a alguma experiência, ela escapará como areia através dos nossos dedos. A falta de confiabilidade fundamental nas coisas pode, é claro, se tornar uma ocasião para uma crítica, especialmente quando outras pessoas nos deixaram na mão por não manter um compromisso ou não completar um trabalho como combinado.

Ninguém, sob forma nenhuma, criticaria uma estrela no céu quando ela se torna supernova e desaparece – nós sabemos que não teria sentido demonstrar esse tipo de reprovação já que isso acontece naturalmente. Mas na realidade, isso é a verdadeira natureza de todas as coisas, e igualmente não faz sentido se queixar sobre a falta de confiabilidade de tudo o mais no universo. Todas as coisas condicionadas são imperfeitas.

Essa é a razão pela qual vale a pena olharmo-nos sem medo e ver o que é que nós não gostamos nas outras pessoas. Desgostamos da negatividade delas? Deveríamos nos examinar em relação à negatividade. Desgostamos da busca constante de atenção da parte delas? É possível que nós também tenhamos o mesmo desejo de ser o centro de atenção? Dessa maneira, conseguiremos nos conhecer cada vez mais.

Todos nós conhecemos o medo que surge repetidamente no decorrer desse exercício: “Talvez eu não seja tão bom quanto eu pensava e se eu não sou bom, outras pessoas irão me desaprovar .” Eu chamo isso de “pensamento de resultado direcionado”: nos enrijecemos de medo diante dessa ameaça como diante de uma chicotada, e isso poderá levar à dor física. Nós acreditamos que tudo tem que ser perfeito, correto em tudo. Mas que expectativa é essa? No universo tudo caminha do seu próprio jeito continuamente. Os rios fluem e qualquer tentativa de pará-los causaria uma enchente. A vida flui continuamente; quando cada dia termina, um novo dia nasce. Por que não nos entregamos a esse fluir das coisas e paramos de pensar em colocar numa direção específica todas as coisas que têm que ser corrigidas?

Isso se aplica tanto à nossa meditação quanto a tudo o mais. Embora possamos estar sentados calmamente na nossa almofada, sem que ninguém nos diga nada ou nos critique,ainda assim descobrimos que nós mesmos estamos colocando pressão e bloqueando a nossa meditação. Se pensarmos que a nossa meditação tem que ser perfeita, seremos incapazes de meditar, e só encontraremos ansiedade. Não tem sentido pretender fazer tudo de modo perfeito; só podemos nos esforçar para fazer o melhor possível. Estaremos em melhor situação se desistirmos do desejo de sermos estimados. É claro que se alguém nos demonstra sua apreciação, gratidão e mesmo contentamento pelo que fizemos, isso é bom, mas bom para eles.

Deveríamos lembrar também que estamos mudando constantemente. Nossos poderes e capacidades podem ser vistos flutuando de um momento para outro. Isso também se aplica na meditação. Algumas vezes a mente foca muito rapidamente; em outras ocasiões ela pode ter que se livrar de tantos pensamentos que uma hora terá passado antes mesmo de termos alcançado um grau de silêncio interior. Nós tendemos a atribuir essa inabilidade ao nosso “ego” e assumí-la como nossa. Mas, por que será que sentimos a necessidade de fazer isso? O que acontece realmente é que a mente está constantemente mudando.

Se pudermos ver como tudo muda em nós mesmos, será lógico concluir que o mesmo acontece com todos os demais. Se uma pessoa se comporta de modo indigno de elogio, deveríamos considerar que ela mudará, na esperança de que seja para melhor. Assim, ao tornarmo-nos mais conscientes da impermanência, especialmente da impermanência do mau comportamento, nós acharemos mais fácil abandonar o hábito de prestar atenção obsessiva aos pequenos erros e de criticar.

Como vimos, aquilo de que nos ressentimos mais nos outros são aquelas características que menos gostamos em nós mesmos. Nós também vimos que se despendermos algum tempo, de vez em quando, para investigar e compreender essas tendências, poderemos fazer um esforço para superá-las. Entretanto, no decorrer desse processo estaremos susceptíveis de fazer algumas críticas pesadas, porque ao mesmo tempo que o comportamento que observamos possa se assemelhar com o nosso próprio comportamento, as pessoas que criticamos podem não estar fazendo o esforço para a purificação que nós fazemos. E essa atitude cria uma quantidade enorme de atrito nos relacionamentos; pode não ser de forma explícita, mas mesmo assim, estaremos guardando sentimentos de desaprovação e antipatia. Repetidamente precisamos fazer um novo esforço para aceitar os outros e refrearmo-nos de criticar. E isso é verdadeiro até em relação a nós mesmos. Não deveríamos criticar e reclamar, mas ter sempre em mente a fórmula: “Reconheça, não critique, mude.”

A primeira parte - obter uma opinião clara sobre nós mesmos - é o mais difícil. 
A segunda parte – não criticar, também não é fácil, pois a mente responde negativamente a qualquer sensação desagradável. Tudo que desgostamos em nós mesmos – tudo que não podemos aceitar e que gostaríamos de mudar – produz uma sensação desagradável e a auto-reprovação, e com isso podemos perder a noção do caminho para o auto-conhecimento.

É o insight da impermanência que facilita a busca do auto-conhecimento. Quando se tornar claro que tudo que vemos está desaparecendo, ficará muito mais fácil evitar o hábito de nos criticarmos.Tudo que vem, vai, e nunca mais retorna, e nada que vem em seguida será exatamente o mesmo, não importando o quão parecido possa ser. Investigando a impermanência deste modo, começaremos a ser capazes de nos aceitar e de aceitar os outros de bom grado.

Reconhecer a verdadeira natureza daquilo que criticamos nos outros, irá nos ajudar a desenvolver uma nova opinião a nosso respeito. Nós nos libertaremos daquilo que nos ofende, não evitando as pessoas com esses defeitos, mas deixando de lado a necessidade de fazer com que os outros sejam responsáveis por não serem do jeito que nós achamos que eles deveriam ser.

Nesse processo, podemos reconhecer tanto a impermanência, como dukkha. Compreender que dukkha surge de nossas próprias reações negativas, que inclui o medo da crítica, torna as coisas mais fáceis para que nos refreemos de criticar os outros. Podemos ver que quase todos conhecem o medo que deriva da falta de apoio e da falta de julgamento positivo, e que esse tipo de dependência das pessoas é extremamente desagradável.

Como podemos supor que as outras pessoas possam ter sempre uma opinião correta sobre nós? Será que não acordamos para o fato de que estamos todos presos na armadilha da ilusão, que torna impossível para nós termos uma opinião verdadeiramente objetiva? A ilusão é que somos indivíduos separados e que podemos ter unicamente contatos agradáveis, através dos meios dos sentidos, se formos suficientemente espertos para arranjar as coisas da maneira certa.

Todos vivem com essa ilusão que lhes proporciona o desejo pela existência e o medo da aniquilação. Como, então, é possível que outra pessoa nos confirme a nossa existência? Todos os medos refletem esse medo da aniquilação. O medo não está limitado ao medo relacionado com a nossa existência física, mas se estende para a nossa existência emocional ou auto-afirmação. Se nos tornarmos cientes desse medo, poderemos desenvolver uma profunda empatia em relação às outras pessoas, pois toda a humanidade sente esse desejo pela existência, que produz o dukkha mais severo.

Esse medo profundamente enraizado é o obstáculo no caminho para o contentamento perfeito, num nível humano básico, e uma vez que comecemos a entender essa correlação, pararemos a busca da satisfação nos lugares errados. Ao invés disso, tentaremos transcender as dificuldades da condição humana causadas pela ilusão do ego. Mas, primeiro, temos de reconhecer que o medo do auto-questionamento, junto com o medo de ser criticado pelos outros, e a correspondente compulsão para criticar, são motivados pela necessidade de reforçar a nossa auto-afirmação. Ao condenarmos os outros, estamos fazendo com que nos sintamos melhor. Chegaremos perto da verdade se admitirmos que todos nós temos fraquezas.

Esse reconhecimento nos leva um grande passo adiante em direção ao insight quanto à fundamental insuficiência da existência, nesse nível humano, condicionado. E só quando nos tornarmos cientes dessa insuficiência é que experienciaremos uma urgência de deixar esse nível para trás – não fisicamente, é claro, mas no que se refere a abandonar nossa ilusão do ego. Os problemas que temos que superar não nos incomodarão mais e nós ganharemos o insight de quaisquer outros problemas que continuem a nos causar dificuldades. Seremos capazes de ver que ainda temos de transcender aqueles problemas, uma vez que alguns eventos ainda podem nos incomodar. Se, por exemplo, ao ler nos depararmos com más notícias e instantaneamente sentirmos negatividade brotando dentro de nós, poderemos assumir que ainda não perdemos nosso desejo e a nossa raiva. Existe muito de destruição no mundo, mas irritação e condenação mostram apenas que o ódio está profundamente enraizado nas pessoas.

Todos nós nascemos com seis raízes – três boas e três más – e elas são a razão pela qual não faz sentido fazermos críticas, tanto a nós mesmos, como aos outros. A única resposta que faz algum sentido é reconhecer essas raízes e nos comprometermos a encorajar as boas raízes a florescer para que gradualmente atenuemos as prejudiciais.

As raízes prejudiciais são, é claro, o desejo, a raiva, e a delusão, (delusão no sentido deilusão do ego). Mas os seus opostos também nos deveriam ser familiares. Se pudemos ver as três raízes boas – generosidade, amor incondicional, e sabedoria – nas outras pessoas, poderemos chegar à conclusão natural de que elas também estão presentes dentro de nós. Na realidade, nós sabemos muito bem, exatamente quando, onde e como praticar. Palavras e preceitos nunca são suficientes por eles mesmos, mas nós já temos sabedoria dentro de nós, o bastante para perceber a verdade quando queremos ouví-la, e saber onde ela pode ser encontrada.

Aqueles que sempre se queixam dos erros dos outros,
Que criticam constantemente,
Os desejos deles crescerão,
Longe estão eles da cessação dos seus desejos
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Nessa estrofe, “cessação dos desejos” é um outro termo para a perfeita purificação. Isso quer dizer que o desejo e a raiva não estão mais presentes, e quando eles tiverem desaparecido a pessoa estará perto da completa iluminação. Até lá, como essas palavras do Buddha deixam claro, existe muito trabalho interior a ser feito, pois enquanto criticarmos, não estaremos cientes das nossas motivações e seremos incapazes de trabalhá-las.

Essas motivações são principalmente as duas raízes do desejo e da raiva. Ambas brotam da delusão, ou ignorância, da ilusão que nos leva a crer que realmente existe “alguém.” No nível relativo é verdade que estamos aqui sentados na nossa almofada de meditação, mas a verdade absoluta é completamente diferente. E como vivemos de acordo com a verdade relativa, como um “eu” que existe em relação a “você,” nós nos experienciamos como separados dos outros e queremos proteger e construir paredes à nossa volta. Para realizar isso, nós fazemos uso dessas motivações e a cada vez que formos negativos, elas são fortalecidas .

Essa é a razão pela qual é tão importante observarmos nossas reações emocionais com atenção plena – estarmos conscientes delas repetidamente, assim que elas ocorrerem, ainda que não possamos abandoná-las. Uma vez que notemos essas reações, poderemos notar também quanta agitação elas incitam e portanto, quão prejudiciais elas são para a calma que necessitamos para a meditação. Na vida diária, não é fácil notar a diferença entre uma mente calma e uma agitada; a meditação, a longo prazo, faz com que esse contraste seja mais aparente. Notamos que nossas reações não consistem unicamente de crítica; suas raízes podem ser encontradas no desejo, na aversão e no medo.

De acordo com o Buda, nossos desejos crescem quando olhamos para os defeitos dos outros e cedemos ao anseio por emoções negativas, pois isso reforça a nossa separação, o que por sua vez leva a uma ilusão de ego ainda mais entrincheirada. Por outro lado, nossos relacionamentos também podem ajudar-nos a aprofundar o insight, se compreendermos que os outros estão sujeitos às mesmas leis da impermanência, sofrimento e insatisfação como nós. Na verdade, deveríamos considerar os relacionamentos com outras pessoas como ocasiões para um aprendizado, e se os usarmos dessa maneira, nos beneficiaremos de um sistema educacional de primeira classe. De fato, podemos considerar nossa vida de modo geral como uma contínua oportunidade para aprender. Todos os relacionamentos podem ser uma medida do nosso treinamento no amor e compaixão e uma excelente oportunidade para podermos nos conhecer.

Se rejeitarmos ou condenarmos uma pessoa, estaremos agitados por dentro. No momento em que abandonamos esse sentimento de censura, a paz retorna. Abandonar não é fácil, mas existem muitos insights pequenos que podem ajudar-nos nessa direção, por exemplo, o insight de que nós mesmos criamos essa agitação e que isso nos prejudica.

Se continuarmos refletindo sobre a impermanência e dukkha, começaremos a entender que o universo todo está sujeito a eles. Tudo está em constante processo de dissolução, de desaparecimento e de um novo surgimento. É por causa desse movimento ininterrupto de todas as coisas que nada pode ser inteiramente satisfatório. Uma vez que reconheçamos o fato da impermanência em todas as coisas, não sofreremos mais por isso. Somos, afinal, parte de uma comunidade de bilhões de pessoas, e cada uma experienciando exatamente o mesmo fato da vida.

Podemos aplicar os princípios gerais da impermanência e dukkha a qualquer situação. Observar essas características em tudo que colocarmos os nossos olhos é o próximo passo no caminho em direção ao insight. Nós então veremos que nada é perfeitamente satisfatório, que tudo é impermanente. Nessa análise, nenhuma exceção pode ser feita; tudo tem de ser incluído. Não podemos dizer, “eu tenho a experiência de dukkha, mas aquela pessoa que me causou tanto dukkha é uma imprestável.” Na verdade, ela experiencia tanto dukkha quanto nós. Assim, gradualmente, desenvolveremos um sentimento de que o mundo é uma totalidade, e que ele não consiste meramente de fenômenos individuais.

Cada vez que reagimos com medo, a soma total de medo no mundo é aumentada. Cada vez que guardamos negatividade dentro de nós, desaprovação ou crítica, a soma total de negatividade é aumentada. Por outro lado, se compreendermos a impermanência e dukkha, esse insight aprofundará a soma total de sabedoria no mundo. Se virmos claramente que cada indivíduo carrega a responsabilidade pela totalidade, estaremos mais preparados para viver num nível onde não vejamos mais todas as coisas como entidades separadas.

Cada boa ação acrescenta bondade no mundo, porque nós somos o mundo. Nossas sensações, pensamentos, palavras e ações são um componente do mundo. Com base nisso, é pura falta de visão criticar; fazer isso é deixar de ver as características fundamentais, ou marcas da existência que são: impermanente, insubstancial e insatisfatória. Quanto mais meditarmos e quanto mais profundamente absorvermos e refletirmos sobre as verdades universais do dhamma, mais fácil será para nós aplicarmos atenção plena nessas marcas da existência e na vida diária.

No nível da verdade absoluta não existem entidades separadas – tudo é manifestação. Mas no nível relativo cada um carrega a responsabilidade pela manifestação do bem. O medo é uma característica que pode ter suas origens no desejo de reter uma natureza essencialmente fixa e separada como indivíduos, e no desejo de que a vida seja agradável o tempo todo. Ambos os desejos não são realistas: não podemos ficar aqui para sempre e as coisas não podem ser agradáveis o tempo todo, assim, o medo surge em relação a esses dois objetivos e bloqueia o nosso caminho. O medo pode ser uma emoção muito poderosa. Diz-se que o medo da morte é pior que a morte. Do mesmo modo, este tipo de emoção desabilita qualquer tentativa de sustentar um insight real. Quase todo meditador experimentou o medo que pode surgir durante a concentração, quando a asseveração do ego repentinamente entra em temporária suspensão.

Uma vez vencido esse medo, o próximo passo é compreender que estivemos correndo atrás de algo impossível. Então, o desejo, realmente sério, de transcender esse nível humano comum de existência se desenvolverá. O medo que surge no curso desse processo precisa ser abandonado, não uma vez, mas muitas vezes, sempre que formos atacados pelo medo de que o nosso ego esteja sob ameaça. Essencialmente, é o mesmo medo de quando estamos sendo criticados ou quando nos é negada a certeza de um ego, que tanto desejamos. Existem muitos nomes diferentes para o medo, mas basicamente é o medo da não-existência.

O antídoto mais efetivo contra a nossa tendência de criticar, os nossos próprios erros e os dos outros, é testemunhar a verdade da impermanência e dukkha. Não é suficiente dizermos para nós mesmos, “eu não deveria criticar.” Nós provavelmente sabemos disso há muito tempo. O problema é que nós somos freqüentemente atraídos pelas coisas que não deveríamos ser. Com relação a isso, só uma atitude engajada com o insight, o principal propósito da meditação, é que poderá nos ajudar.

O objetivo da meditação é fazer com que experienciemos a nós mesmos mais profundamente, e essa é a razão pela qual ela deveria ser apoiada pela contemplação e reflexão para aumentar a nossa autoconsciência. Que grau de medo nós guardamos dentro de nós? Quanto tememos a perda de nós mesmos? Esse tipo de inquisição nos leva mais próximos da verdade. O problema crucial aqui não é se somos capazes de abandonar o nosso medo imediatamente, mas se podemos ganhar novos insights através desse nosso exame.

Poderemos aprender muitas coisas com os defeitos dos outros. Acima de tudo, poderemos chegar a conhecer muita coisa sobre nós mesmos. E quando assim o fizermos, alcançaremos um sentimento de conexão, de solidariedade para com os outros, como se eles fossem nossos irmãos e irmãs. Do contrário, enquanto nos mantivermos separados e enfatizando nossas diferenças pessoais, nossos apegos, nossos desejos e raiva terão a sua força aumentada.

Ayya Khema

* dukkha diz respeito ao nosso condicionamento de vida dentro de experiências cíclicas, onde nos alternamos entre boas experiências (felicidade) e más experiências (sofrimento)
Além disso, as experiências são impermanentes, as idéias, os conceitos, os pensamentos, todos são impermanentes, mudam. Por isso dentro da experiência de felicidade existe a causa de uma experiência de sofrimento, pois ela também é impermanente e irá mudar.
Então, dukkha representa todo esse ciclo, e a insatisfação que nunca será saciada enquanto seguirmos esse ciclo.

Nota: Ayya ​​Khema - 25 de agosto de 1923 - 2 de novembro de 1997), uma professora Budista , nasceu como Ilse Küssel em Berlim , Alemanha , com pais judeus. Khema escapou à perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial . Ela mudou-se para o Estados Unidos . Depois de viajar na Ásia ela decidiu se tornar uma budista freira no Sri Lanka , em 1979. Ela era muito ativa na criação de portunidades para as mulheres que praticam o Budismo, fundando vários centros ao redor do mundo. Em 1987, ela coordenou a primeira Conferência Internacional de monjas budistas . Khema escreveu mais de duas dúzias de livros em Inglês e Alemão , incluindo sua autobiografia : Eu dou-lhe a minha vida.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Ayya_Khema