sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A VIA DA VIGILÂNCIA INTERIOR


Extrato do Livro " A VIA DA VIGILÂNCIA INTERIOR" de Edward Salim Michael

39º. CAPÍTULO

Sādhaṇa e iluminação (1ªParte)

Todas as leis lógicas e a compreensão que o ser humano tem do Universo e da vida afirmam ser impossível contemplar o seu eu físico sem a ajuda de algum objecto exterior tal como um espelho, um pedaço de metal, um lago transparente, etc. Quanto à contemplação do nosso interior ou eu espiritual, normalmente tal seria considerado não só totalmente impossível, mas até mesmo totalmente ilógico e ridículo. Contudo, um ser iluminado sabe por experiência directa, que, em meditação profunda, ao se alcançarem planos superiores de consciência, se atinge outras dimensões em que o normal e inconcebível acto de contemplação do Eu incorpóreo de cada um, se torna miraculosamente possível, embora o seja de uma maneira inteiramente inexplicável e incompreensível à mente racional.
 

Este extraordinário estado só pode ser experimentado a partir do seu mais íntimo recesso, e é percebido como um vasto e transparente Eu sem forma, espalhando-se em todas as direcções além da forma física, para o infinito, um “Espectador” misterioso e sem forma, mergulhado na silenciosa auto-contemplação. Tal como um oceano ilimitado de consciência sem começo nem fim, este Eu invisível, apesar de não ter forma, possui uma realidade sua que é inexoravelmente maior do que o tangível corpo terreno de cada um. Na verdade, comparada com este raro estado de ser, a forma física perde toda a realidade. Neste estado sagrado, o contemplador, o contemplado, e a contemplação são um só. É um acto muito misterioso e inexplicável, em que, paradoxalmente, existe a contemplação do Eu ao mesmo tempo que é o Eu a ser contemplado. Estando imerso neste estado, tem-se a estranha impressão de regressar à eternidade da Origem Suprema. 

Invade-o uma sensação de indescritível pureza, e também um abençoado sentimento da imensa “solidão cósmica” e de profunda paz interior, ultrapassando tudo jamais conhecido no estado habitual de existência exterior.
 

Algo deste raro e bendito estado também passa a acompanhar o praticante na sua habitual prática diária. Primeiro, exige-lhe esforços bastante delicados e repetidos de presença interior, enquanto se abandonar, simultaneamente, no Sublime nele existente. Ao repetir pacientemente estes esforços subtis, vai criar as condições necessárias para a sua própria transformação, permitindo por fim, que a sua natureza superior ocupe o lugar certo na cidade celestial do seu ser e a governe por seu intermédio. Ele será um canal para que se cumpra a divina vontade nele próprio e nos planos inferiores da existência. Ao transportar esta chama radiante às zonas sombrias da sua natureza e aonde dela houver mais necessidade, mostrará, pela compreensão superior que tão penosamente adquiriu, o caminho que alivia o sofrimento da tão desamparada e desesperada humanidade.
 

Depois de ter recebido esta luz, desejará, ao princípio, retirar-se para a quietude e felicidade do seu ser interior, recusando tudo o resto. Inebriado por este néctar celestial, pode ser naturalmente tentado a perder-se neste estado beatífico, rejeitando por completo o mundo exterior – um mundo que, em comparação, lhe parecerá tão rude e dissonante. Sentir-se-á como um homem completamente apaixonado, tendo encontrado a mulher cuja extraordinária beleza está para além de tudo quanto tivesse sonhado, abandonando tudo na vida só para ficar sempre com ela o tempo todo. Pode até acreditar que atingiu tudo quanto há para atingir e saber, e que nada mais há a fazer do que ficar tranquilamente na sua morada celestial do Nirvāṇa que, pelo muito esforço dispendido, mereceu ganhar. Mas afinal não é assim tão fácil como isso.
 

Como já foi dito anteriormente, a iluminação não significa necessariamente libertação. Também não nos podemos esquecer de que há diferentes graus de iluminação. Para a maioria dos aspirantes, iluminação (se de facto aconteceu) significa apenas o começo desta árdua jornada em direcção à emancipação. Só a vida exterior é que pode providenciar as condições necessárias ao ser humano para se poder conhecer melhor, para encontrar a coragem que o leve a enfrentar repetidas adversidades ou insucessos, não odiar quando se enganar, não tomar o que é dos outros, não causar sofrimento à sua volta para satisfazer desejos impermanentes, não se comportar incorrectamente para com os outros por razões egoístas, etc. A iluminação não é senão o início do verdadeiro Sādhaṇa. É o começo de uma vida inteira de trabalho e de estudo. Porque não podemos esquecer-nos de onde começámos: as tendências pessoais por transformar, bem como os impulsos sexuais e outras necessidades erguerão as suas cabeças sedentas, vezes e sem conta, e sempre importunarão alguém.
 

Até, se o aspirante se afastar completamente do mundo, vai aperceber-se, mais cedo ou mais tarde (a não ser que seja uma das raras excepções), que terá de sair do seu refúgio, para satisfazer exigências de vários tipos, e pela necessidade de pôr em prática, na vida activa, o seu trabalho espiritual. Como em todos os domínios, tem de se encontrar o equilíbrio certo entre a meditação e a vida activa permitindo que o verdadeiro e saudável crescimento espiritual se realize. É preciso inspirar para expirar, mas também é necessário expirar para poder inspirar de novo.
 

Independentemente de todas as invulgares experiências espirituais realizadas, deve encarar o difícil facto de ser ainda um ser incompleto, cheio de tendências indesejáveis, sem vontade e força interior, indigno ainda para servir de uma maneira adequada. Mesmo que deseje, neste estádio, partilhar o conhecimento superior adquirido, arrisca-se a confundir tudo com inexactidões e orgulho espiritual, podendo às vezes, acrescentar pequenas fantasias, provenientes do desejo oculto de ser importante aos olhos dos outros.
 

Se, depois de ter conhecido o seu aspecto luminoso, não conseguir incrementar o desejo forte e sincero de conhecer o seu lado obscuro – talvez por pensar que tendo tido as sagradas experiências espirituais que teve, tal já não será importante – tornará a sua emancipação muito incerta, senão mesmo impraticável. A descoberta do Sublime em cada um não significa a libertação imediata da sua sujeição ao eu inferior. Esta luz divina não poderá ser usada como mero desejo de se retirar para o estado abençoado do oásis celestial. Poderá inconscientemente restar um leve desejo de escapar para estados elevados, só que, – por causa do nível em que encontra – de qualquer maneira não durará muito até acordar e se afundar no estado inferior de consciência, e por fim desaparecer, o que o deixará desolado novamente na aridez do seu estado habitual.
 

Desta forma, por não se aperceber do quanto tudo isto envolve, de cada vez que tentar tocar estes elevados estados, que só se manifestarão por breves períodos, e, sem compreender a razão, será sempre relegado para o nível correspondente ao seu grau de evolução. Se não conseguir reformular dentro de si a coragem para, de forma paciente, enfrentar e sofrer de novo a verdade daquilo que é – com todas as negatividades explícitas e implícitas, malevolências, conceitos, preguiça, instabilidade, estupidez, não fiabilidade, etc. – o Sādhaṇa não terá cumprido a verdadeira função da sua transformação. Será apenas um som altissonante na sua boca, vazio e improdutivo, tal como uma semente num solo pobre.
 

Pode não perceber, ao princípio, mas de cada vez que se vê tal como é, dá-se uma verdadeira alquimia, capaz de criar a verdadeira e provavelmente a única condição para a sua transformação. 

Pese embora a possibilidade de descobrir, por vezes, coisas muito desagradáveis sobre si mesmo, tem de ter o cuidado de não as desconsiderar, não se esquecendo da luz que subjaz nelas, brilhando eternamente, e através da qual podem ser vistas.

capa do livro